sexta-feira, 3 de agosto de 2012

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terça-feira, 17 de abril de 2012

Versão integral do conto "Razão e Fúria"

Razão e fúria, 

por Marcelo Hipólito



          A lenda dos lobisomens sempre foi envolta em incertezas e mistérios. Mas, certos elementos repetiam-se na maioria dos relatos conhecidos sobre essas criaturas terríveis:
            Lobisomens eram indestrutíveis, exceto por ferimentos causados por lâminas ou balas feitas de prata.
             Lobisomens vagavam pelas noites de lua cheia chacinando todos os homens e lobos que tivessem a infelicidade de cruzar seu caminho.
             Homens feridos, porém, vivos após um encontro com um lobisomem transformavam-se eles mesmos em besta na próxima lua cheia.
         
Curiosamente, porém, no correr dos séculos, poucos se perguntaram sobre o destino de um lobo que sobrevivesse a um ataque de lobisomem...

Numa noite gelada, a lua inóspita e prateada lançava seu brilho tétrico, como falanges demoníacas, sobre um esquecido bosque da Bretanha, no Ano do Senhor de 1666.
O inverno severo lançara o mundo numa desolação branca, de caça escassa e miséria constante.
Um jovem lobo cinzento arrastava as patas com dificuldades pela neve suja e perene.
Pele e ossos, o lobo ansiava por comida. Ele era o último remanescente de sua alcatéia, eliminada pelo frio e a fome.
Subitamente, um farfalhar de arbustos aguçou os instintos predatórios do lobo. Curioso e esfomeado, o animal forçou seu avanço silencioso em direção à possível presa.
Então, o caçador tornou-se a caça.
Um enorme lobisomem saltou dos arbustos numa explosão de mandíbulas e garras.
O ataque foi rápido e brutal.
O lobisomem abocanhou o torso do pobre lobo e rasgou-lhe carnes e tendões.
Porém, seu bote rápido, feroz e impetuoso lançou a ambos para longe da pequena clareira, ribanceira abaixo.
Rolaram juntos pela neve, até as margens congeladas de um rio perdido nos confins do bosque.
O corpo ensanguentado do lobo deslizou indefeso pela camada de gelo que cobria o extenso rio. Ele forçou as patas machucadas para se firmarem e erguerem, mas estava debilitado demais para consegui-lo.
Recuperado do susto, ileso e maligno, o lobisomem elevou-se em seus quatro vigorosos membros e encaminhou-se ao lobo ferido. Suas presas rangiam selvagens. Urrava ao vento o esplendor do seu ódio e desejo de matança.
Contudo, seu momento de vitória sucumbiu sob seu próprio peso descomunal, insuportável à fina camada de gelo.
O monstro afundou nas águas geladas, lutando para retornar à superfície.
As fortes correntes submersas, porém, arrastaram-no para longe. A besta desapareceu nas profundezas do rio.
Instintivamente, o lobo arrastou suas carnes dilaceradas até às margens, onde se deparou com um largo e ressecado tronco caído. Em cujo interior, encontrou refúgio.
Por fim, o animal sucumbiu à exaustão e desmaiou, pelo resto da madrugada, um dia inteiro e a noite seguinte.
As luzes da alvorada despontaram pálidas no horizonte, quando o lobo finalmente despertou. Suas entranhas ardiam em fogo e agonia.
Se a maldição do lobo liberava a besta adormecida no interior dos homens, aos lobos concedia-lhes o fardo da humanidade.
Assim, o lobo ferido deixou o tronco berrando de dor. Ele se transformava: seus pêlos caíam e as feições caninas suavizavam.
Um impulso incontrolável ergueu-o nas patas traseiras. Estas viraram pés; as dianteiras, mãos.
Suas garras tornaram-se unhas.
Sua face amalgamou-se num misto de homem e fera, careca, livre de sobrancelhas, com orelhas e nariz curtos e achatados.
Apenas seus olhos retiveram o aspecto genuinamente lupino.
O animal se tornara um homem-lobo, consciente e racional: o oposto do feral lobisomem.
E como homem-lobo a primeira consequência de sua metamorfose atingiu-lhe com uma força estonteante: na forma implacável, inédita, desesperada, de um pensamento.
E como ser pensante, o homem-lobo descobriu-se existir.
E seu pensamento inicial foi: “Quem sou eu?”.
E este foi seguido por “De onde eu vim?” e “O que eu farei?”, perguntas embaladas em estranheza e pavor.
Ele temia o desconhecido, o mundo ao redor, a própria explosão de idéias, desordenadas e frenéticas, que torturavam sua mente num fluxo agitado, atordoante, incontrolável.
Sem pistas de sua identidade e origens, a criatura esgueirou-se, nua e trêmula, pela névoa fresca da manhã. Desprovida de pêlos, padecia sob o orvalho e o vento frios. Seus pés descalços ardiam em contato com a neve enlameada.
E o homem-lobo caminhou por horas, a esmo, assoberbado pelo grotesco da autoconsciência.
Inadvertidamente, ele atingiu os limites do bosque, deparando-se com um modesto sítio. Uma família humilde alimentava porcos magros e barulhentos.
O homem-lobo surpreendeu-se com as roupas sujas e puídas que usavam. E ele sentiu vergonha de sua nudez.
A criatura buscou o varal de roupas nos fundos da casa e roubou uma calça comprida, camisa e casacão.
As peças ficaram-lhe largas no corpo, porém, protegiam-no bem do frio.
Em seu retorno ao bosque, o homem-lobo aproveitou-se para afanar também um velho par de botas surradas.
Maldizia-se pelos furtos cometidos. Contudo, sua necessidade falara mais alto.
E ele explorou o bosque.
Passou os dias seguintes habituando-se à sua recém descoberta condição humana. Ela o fascinava, intrigava, assustava.
A maldição atingia inversamente homens e lobos.
A lua cheia fazia os homens em lobisomens, porém, no resto do tempo viviam como humanos.
Para os lobos, a lua cheia significava o contrário: o momento em que retornavam à sua forma original, lupina. Nas demais noites e dias, existiam como seres delicados, racionais e gentis.
Se os lobisomens matavam homens e lobos, o homem-lobo admirava os humanos, ainda que eternamente afastado deles devido à sua aparência medonha, e mostrava-se amigo dos lobos.
De fato, uma nova alcatéia surgira no bosque. O inverno chegava ao fim e a primavera trazia seu calor ameno.
Lebres, castores e esquilos deixavam suas tocas.
E esses lobos recém-chegados, fortes e robustos, caçavam e compartilhavam a carne de suas presas com o homem-lobo.
Este descobrira por si mesmo o segredo do fogo e apreciava o sabor da carne assada, em vez de crua e sangrenta.
Certo dia, em um de seus passeios aos limites do bosque, o homem-lobo encontrou as sobras de um piquenique: uma garrafa vazia de vinho, farelos de pão e um livro esquecido.
Ele guardou-os com curiosidade e carinho. O livro, porém, provou-se seu maior tesouro.
Mera obra para crianças, com poucas palavras e muitas figuras. Ainda assim, foi capaz de instigar-lhe o intelecto e ensinar-lhe suas primeiras palavras.
A busca e a vontade do saber levaram-no para além do bosque.
Eventualmente, ele deparou-se com as luzes de Rennes, capital da Bretanha, dona de casas enormes e becos sombrios, cavalheiros elegantes e mercadores ardilosos, damas refinadas e ruas cobertas de bosta de cavalo.
E, toda noite, o homem-lobo esgueirava-se pelas ruas escuras de Rennes e invadia em silêncio as bibliotecas das mansões aristocráticas, levando-lhes os livros e desfrutando de seu conhecimento.
Com os poetas, ele descobriu a beleza e a música das palavras. Dos filósofos, absorveu as inquietudes da razão e da existência. Na Bíblia, aprofundou-se nos mistérios de Deus.
E meditou profundamente a respeito da alma humana.
Para sua profunda amargura, concluiu que não a tinha e jamais a possuiria. Afinal, não era humano, mas fruto de uma maldição. Nascera um lobo, uma besta, um animal.
E, aos bichos, Deus negara Sua maior benção, pois a dádiva da alma fora reservada somente aos homens.
Atormentado, sofrido e assombrado, encontrou em um livro sobre lobisomens a única saída capaz de enxergar, alívio desesperado às suas tristeza e inquietação permanentes.
Assim, sob o manto da noite, vasculhou a cidade por uma loja de artigos de luxo, forçando-lhe a porta e achando sua pérfida salvação: uma faca de caça ricamente forjada, com punhal de marfim e poderosa lâmina de prata.
As lágrimas desciam de seus olhos, quando encravou a arma no coração.
Pela manhã, os empregados surpreenderam-se com o cadáver do jovem lobo, caído no interior da loja arrombada, com uma faca de prata enterrada no peito. E podiam jurar que havia uma expressão quase humana na face do animal. Uma sombra trágica e melancólica.

Todos os direitos reservados.
©2009

Algumas resenhas e comentários sobre “Razão e Fúria”, conto da antologia “Metamorfose – A Fúria dos Lobisomens” (All Print, 2009)

1) Celly Borges comentou sobre “Razão e Fúria” no site Mundo de Fantas:

““ O homem-lobo surpreendeu-se (...) E ele sentiu vergonha de sua nudez”.

A maldição também pode ser ao contrário e atingir o lobo, transformá-lo em homem.
E para quem seria o pior castigo na transformação, para o homem ou para o lobo que
adquire consciência em sua nova condição? Ao ler este conto imaginei que poderia bem
se tratar de um romance.”

2) Ademir Pascale, organizador da antologia “Metamorfose – A Fúria dos
Lobisomens”, no site Escrituras da Lua Cheia:

“Todos os contos do livro Metamorfose são especiais, mas achei super diferente o conto
do Marcelo Hipólito, intitulado "Razão e Fúria", mas não posso dar spoiler”.

3) Liêvin, no site Sobre Livros, teceu as seguintes observações:

“Posso simplesmente afugentá-los e começar a comentar cada um dos 37 contos ou
comentar os mais legais entre todos os legais. Que tal? Vamos começar.

Razão e Fúria – Marcelo Hipólito

Narra o surgimento do lobisomem por outra ótica. Só conhecemos essa fera partindo do
princípio de que antes se era homem e na lua cheia virou lobo, mas Marcelo Hipólito
faz um sentido inverso. Antes era um lobo e na lua cheia virou homem. É um conto bem
melancólico e muito bem escrito. Uma espécie de gênesis e apocalipse para essa versão
de lobisomem”.

E como ser pensante, o homem-lobo descobriu-se existir. E seu pensamento inicial foi:
quem sou eu? ””

4) O Blog das Resenhas publicou “Razão e Fúria” na lista dos contos mais apreciados
da obra: “Quando humanos são mordidos por lobo-homens, viram essas mesmas bestas
nas noites de lua cheia. Se lobos forem mordidos, aconteceria o contrário?”.

5) Fabio Shiva escreveu no Skoob:

“Uma história que gostei muito foi “Razão e Fúria”, de Marcelo Hipólito, que teve uma
ideia realmente interessante”.

6) Dany Welch, do site Leituras & Fofuras, destacou “Razão e Fúria” na lista dos
melhores contos da antologia.